“Eu sou gay.” Era isso o que Henrique queria ter dito durante a discussão com a mãe no carro. Enquanto ouvia as palavras “quando você vai nos apresentar uma namorada?” e respondia com um “não vou”. Sentia tremer as camadas de mentira que mantinham uma imagem diferente para os outros. Ninguém se explica quando se é hetero. Ninguém deveria se preocupar com quem a outra pessoa vai amar. O problema estava em achar que heterossexuais amam e homossexuais fazem sacanagem.
Henrique não escolheu conversar sobre algo importante ali. Escolheu aproveitar o fato de a mãe ter entrado no assunto ao perguntar “vai ser um namorado, então?” “Talvez.” E com um talvez, tudo foi jogado para o painel.
Entre acusações de que a culpa era dos amigos de Henrique. De que era uma escolha, bastando força de vontade para abrir mão dessa opção. De que a onda agora era ser diferente, o rapaz rebatia da forma que podia. Dava ênfase em ter nascido daquela forma. Tentava manter a calma e não tornar a situação mais dramática. Vendo a mãe, olhos marejados e voz trêmula, relembrou de quando lutava contra si dizendo ser apenas uma fase. De quando a dor de ser diferente preenchia os momentos em que estava com os colegas. Defendeu-se dizendo que ninguém escolhia sofrer.
A mãe se culpava perguntando em que parte havia errado na criação de Henrique. Não havia erros. “Você me criou muito bem”, disse apreensivo durante a pausa no semáforo. Sair do carro não era uma opção e nada faria o tempo voltar. Ele não queria. Desajeitado, juntando o restante de autocontrole que tinha e mantendo os pedaços de quem era protegidos com as mãos, ofereceu-se para tirar todas as dúvidas da mãe e destruir a imagem preconceituosa que a vida cravou-lhe. Recusando, ela preferiu cobrir e ignorar que aquilo havia acontecido. Henrique queria dizer “eu sou gay” para que nenhuma dúvida restasse. Para que ilusões não fossem nutridas. Para que o peso, carregado há tempos, pudesse ser largado.
Não foi a discussão em si que deixou-o sem chão. A sensação de vazio depois de ter acabado, de forma abrupta, foi substituída por insegurança e fracasso. Henrique lembrou-se de todas as histórias parecidas que conhecia. Pais julgando o filho com o dedo apontado. Pais que preferiram acreditar na falsa imagem transmitida sobre a sexualidade. Que ignoravam anos de convivência, toda a criação, ensinamentos, conversas e sorrisos. Filho com o coração na mão, estendido de forma crua para que fosse abrigado pela família. Henrique se perguntava como aquilo era possível. Como tudo desmoronava com a ideia de se amar alguém do mesmo sexo.
Chegando em seu destino, um happy hour com os amigos, ele encarou a mãe antes de sair do carro. Queria abraçá-la e dizer que tudo ficaria bem. Queria ouvi-la dizendo que já sabia de tudo, se esconder não faria mais parte da vida do filho e que continuaria a amá-lo, como sempre fez. Não aconteceu. Com a imagem do rosto magoado da mãe, Henrique saiu do carro. Mãos nos bolsos e ombros encolhidos, disse baixinho “eu sou gay”.
Dizer aquelas palavras, deixando-as ecoar para fora da cabeça, fez Henrique chorar. Em uma vida regrada pelo silêncio, qualquer sussurro transforma-se em grito. E com esse grito, as camadas de mentira começaram a rachar, trazendo, de alguma forma, alívio.
Seu melhor texto, ficou simplesmente fantástico. E a imagem como símbolo exemplificou muito bem, adorei.
Perfeito…
Eu podia dizer várias coisas, mas me detenho em dizer que a sensibilidade e a delicadeza que você demonstrou neste texto me surpreendeu.
É o primeiro texto que tenho o privilégio de ler seu e gostei muito da sua coragem com as palavras, vi que você não teve medo de usar e juntá-las a formar um pensamento emocionante e reflexivo.
Parabéns!
Jônatas Amaral
Parabéns, estou sem palavras pois este texto é nada mais nada menos do que acontece realmente. Infelizmente mas acontece.
Narrativa perfeita. Que demora do seu livro sair. Ahhhh